O aborto e seu estudo à luz dos Direitos Humanos
Com o julgamento da ADPF n. 442, no âmbito do Supremo Tribunal Federal, novamente viram-se retomadas as discussões sobre a possibilidade da interrupção da gravidez, legalmente, até a 12ª semana de gestação no Brasil. Superadas as questões político-religiosas, urge uma análise técnica, dentro da única seara pertinente ao estudo em espeque: os Direitos Humanos.
Com a devida licença, esclareço que discutir o aborto não é uma questão de Saúde Pública, bem longe disso. Se assim o fosse, estaríamos diante de uma portaria do Ministério da Saúde, ou ainda, do SUS, versando sobre o tema. Ou, em hipótese mais acertada, em processo legislativo para adoção de lei que tratasse do tema. Em seara completamente diversa, estamos diante de uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, cujas iniciais compõem a sigla ADPF. Portanto, se é uma ação, trata-se algo intimamente ligado ao universo jurídico, mais precisamente ao Direito Humanitário, justamente por se tratar da arguição de descumprimento de um preceito fundamental, ou melhor dizendo, de um direito inerente ao ser humano tutelado e submetido pela Constituição Federal de 1988.
Nesse sentido, a ADPF n. 442 é uma ação judicial movida pelo Partido Socialismo e Liberdade – PSOL tendo por objetivo a não recepção pela Constituição de 1988, os arts. 124 e 126 do Código Penal Brasileiro (Decreto-Lei n. 2848/1940). Trocando em miúdos, a legislação penal é anterior à constituição vigente (1988), devendo recepcionar ou não a legislação já existente no país, quando da sua promulgação. Segundo o partido político autor da ação, os arts. 124 e 126 do Código Penal, portanto, são incompatíveis com o Estado de Direito criado pela Magna Carta de 1988. São os dispositivos:
“Art. 124 – Provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lho provoque:
Pena – detenção, de um a três anos.
(…)
Art. 126 – Provocar aborto com o consentimento da gestante:
Pena – reclusão, de um a quatro anos.
Parágrafo único. Aplica-se a pena do artigo anterior, se a gestante não é maior de quatorze anos, ou é alienada ou débil mental, ou se o consentimento é obtido mediante fraude, grave ameaça ou violência.”
Os dois artigos do Código Penal criminalizam a prática do aborto no Brasil, punindo a gestante e quem lhe auxilia. E segundo o partido político autor da ação, “o aborto é um fato da vida reprodutiva das mulheres”, sendo sua proibição um descumprimento ao que estabelecem as linhas do Estado de Direito trazido pela Constituição de 1988.
Em apertada síntese, o PSOL entende que a criminalização do aborto (i) compromete a dignidade da pessoa humana e a cidadania das mulheres, “pois não lhes reconhece a capacidade ética e política de tomar decisões reprodutivas relevantes para a realização de seu projeto de vida”; (ii) ofende ao princípio da não discriminação porque “desproporcionalmente mulheres negras e indígenas, pobres, de baixa escolaridade e que vivem distante de centros urbanos, onde os métodos para a realização de um aborto são mais inseguros do que aqueles utilizados por mulheres com maior acesso à informação e poder econômico”; (iii) viola o art. 3º, IV da Constituição, que estabelece o bem de todos, sem discriminações ou preconceitos, como um dos objetivos republicanos; (iv) provoca direito à saúde das mulheres, “uma vez que a negação do direito ao aborto pode levar a dores e sofrimentos agudos para uma mulher, ainda mais graves e previsíveis conforme condições específicas de vulnerabilidade que variam com a idade, classe, cor e condição de deficiência de mulheres, adolescentes e meninas”; (v) contraria os direitos à vida e à segurança da mulher, “por relegar mulheres à clandestinidade de procedimentos ilegais e inseguros”, (vi) infringe o direito ao planejamento familiar, pois tira da mulher o direito de “tomar uma decisão reprodutiva relevante e crucial.” (vii) ataca os direitos à liberdade e à sexualidade, porque “por impedir às mulheres o efetivo controle sobre a própria fecundidade e a possibilidade de tomar decisões responsáveis sobre sua sexualidade, sem risco de sofrer coerção ou violência”; (viii) ofende o princípio da igualdade de gênero, porque “uma vez que impõe às mulheres condições mais gravosas, inclusive perigosas à sua vida e saúde, para a tomada de decisões reprodutivas, desproporcionais em comparação com as condições para a tomada das mesmas decisões por parte dos homens, que não são submetidos à criminalização e a consequências da coerção penal nas condições de exercício de seus direitos a uma vida digna e cidadã”.
Esse é exatamente o panorama proposto para a decisão de nosso Pretório Excelso, o STF. Por isso ratifico meu posicionamento inicial de que não se trata de uma questão de saúde pública. Até porque se o cometimento de crimes fosse da alçada da saúde pública, poderíamos entender que o homicídio (tipo bastante parecido com o aborto) também seria uma questão de saúde pública, haja vista gerar severas consequências na incolumidade física da vítima e psíquico-emocionais em seus familiares. E todos são uníssonos ao enxergar outras formas de tirar a vida humana como questões não afetas à saúde, ainda que os hospitais – por obrigação constitucional – estejam abertos para atender as possíveis vítimas ainda vivas em decorrências dos dois crimes: homicídio e aborto.
Delimitada a seara da discussão – até por se tratar de um estudo jurídico -, é impossível deixar de analisar o cenário adjetivo, ou procedimental que envolve a questão. São as chamadas preliminares, que urgem serem abordadas antes da discussão do mérito, tendo o Ministério Público Federal se calcado em uma delas, para pugnar pela incompetência material do Supremo Tribunal Federal para decidir sobre o caso, sob pena de violação ao Princípio da Separação do Três Poderes. Em judicioso e preclaro parecer o douto Procurador Geral da República aduziu que
A controvérsia perpassa a interpretação do princípio da separação de poderes e a discussão a respeito das funções a serem desempenhadas pelos poderes Judiciário e Legislativo na solução de questões complexas objeto de dissensos e divergências que extrapolam o âmbito jurídico, adentrando o campo dos consensos sociais possíveis de caráter político, filosófico, científico, moral, ético e religioso. Parecer AJCONST/Nº 142513/2020, fl. 13
Com base nesta linha de pensamento, entendeu pelo não cabimento da “descriminalização da interrupção voluntária da gravidez nas 12 primeiras semanas de gestação na via do controle concentrado de constitucionalidade, por constituir deliberação reservada às competências constitucionais, às capacidades institucionais, e à legitimidade do Poder Legislativo.” Por isso seu parecer foi pela improcedência da ação. Em outras palavras, o Ministério Público Federal entendeu que a decisão do tema, qual fosse, por parte do STF representaria um ato positivo de legislar, cuja competência é função típica do Poder Legislativo, desvirtuando, dessa forma, a harmonia entre os três poderes exigida pela Constituição.
Com todo o respeito, peço licença para divergir. Em que pese a irretocável explanação sobre a separação dos poderes, com inspiração em Montesquieu e preciosa fundamentação do Parquet, entendo que o Poder Legislativo deve estar revestido pelo poder de legislar abstratamente, por onde se deflagra o mais puro mens legislatoris, em detrimento ao mens legis. Por outro ângulo, diria que os legisladores federais (Deputados Federais e Senadores da República) foram, no exercício da Democracia, eleitos pelo povo brasileiro, para representá-lo no cenário nacional, dentro de uma federação que encontra nos deputados a representação popular e nos senadores a representação de suas unidades federadas. E esses legisladores carregam em si a procuração do povo brasileiro conferida por meio do voto. Assim, se todo o poder emana do povo, nos termos da Constituição da República (art. 1, parágrafo único CF/88), é a intenção do legislador (mens legislatoris)que deve preponderar, exatamente por ser, ao menos em tese, a vontade do povo.
De qualquer forma, é imprescindível que essa vontade expressa pelo legislador se opere de forma geral e abstrata. No caso concreto, está-se diante do reconhecimento da recepção ou não de dispositivos do Código Penal, e não da disciplina de um tema a ser amplamente definido, como seria, ante o caso concreto, a questão do aborto.
Entendo, e até acharia salutar se essa discussão ocorresse e o tema fosse legislado em detalhes. Nesse panorama sim estaríamos diante de uma questão multifacetada, com todas as vertentes lançadas pela PGR e tantas outras mais, inclusive, a saúde pública. Defendo até mesmo que o Estado recorra à consulta popular, diante da importância e relevância do tema, nos termos das ferramentas constitucionais do plebiscito ou do referendo. Mas, definitivamente, este não é o caso da ADPF 442.
Como já dito anteriormente, trata-se do ataque a dois artigos do Código Penal, justamente por não terem sido recepcionados na Constituição Federal de 1988, no entendimento do partido autor. Entendimento um tanto quanto tardio, com atraso de quase vinte anos, haja vista ter esse tipo de ação sido devidamente regulamentada em 1999. De qualquer forma, não há prazo e o seu processamento foi validado. Vamos ao mérito.
No que diz respeito ao estudo criminal do feito, não é verdadeiro o argumento de que o dispositivo seria obsoleto por vir de redação datada da década de 1940, tempos com ordenamento jurídico diametralmente diverso do atual. Em que pese ter sido mantida a redação original dos dois dispositivos atacados, é imperioso destacar que ambos permaneceram após a minuciosa reforma do Código Penal de 1984, a qual elevou o Brasil a reconhecimento internacional no que diz respeito à modernidade de suas políticas penais. E, como é de cognição geral, a Lei n. 7.209/84 não promoveu alterações nesses artigos, sendo os mesmos aplicados até os tempos hodiernos sem mudanças, tendo passado pela sistemática atualização da reforma mencionada. De toda sorte, pode ainda surgir o argumento de que a reforma se deu em data pretérita à Constituição de 1988. Sem problemas.
O art. 2º do Código Civil Brasileiro (Lei n. 10.406/02), aprovado pelos representantes do povo, seguindo todo o escrutínio legislativo, trouxe a seguinte redação: “A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro.”
Em que pese possa vir qualquer pesquisa científica, jornalística, acadêmica, ou de direito comparado – as quais nutro o maior respeito – fato é que para o nosso ordenamento jurídico os direitos do nascituro (feto) começam desde a concepção, por previsão legal expressa, contra a qual não há argumentos em igual patamar no momento. Fazendo um exercício hermenêutico simples, deflui-se que os direitos fundamentais estabelecidos pela Constituição da República são a vida, a liberdade, igualdade, a segurança e a propriedade, nos termos do seu art. 5º, caput, sendo os demais todos decorrentes deles e igualmente pétreos (art. 60, §4º, IV CF/88). Dessa forma, se o legislador definiu que o feto é sujeito de direitos após a concepção (art. 2º do CC/02), é-lhe assegurado o mais jus natural de todos os direitos humanos: o direito à vida. Portanto, sua interrupção – após a concepção – já seria, ao menos, um ato ilícito, se o direito vergastado não fosse um direito fundamental. Como o é, impossível não vislumbrá-lo dentro da seara da criminalidade.
Toda linha argumentativa do partido autor da ação orbita em torno dos direitos da mulher e tenta impor a ideia de que o destino do nascituro deve ser exclusivamente por ela gerido. Uma narrativa que contraria a natureza e o ordenamento jurídico brasileiro. Sem maiores aprofundamentos biológicos, é fato de que o ser humano não consegue se autorreproduzir. O embrião humano advém da junção dos gametas masculino e feminino, necessariamente. E, apenas esse já seria o argumento cabal para o repúdio à teoria do descarte que contextualiza a discricionariedade absoluta da mulher nas 12 primeiras semanas de gravidez, entoada ao grito do “meu corpo, minhas regras”.
O ser humano ainda embrionário, cujo direito à vida já está garantido pelo art. 2º do Código Civil, combinado com o art. 5º da Constituição de 1988 tem pai e mãe. É matéria indivisível dessa união que nenhuma ideologia será capaz de relativizar. A gestão reprodutiva, bem como o planejamento familiar pode sim ser feminino, porque se praticam antes da concepção. Depois, jamais. Uma vez gerado o embrião, ele será – até maioridade – responsabilidade dos pais. É absolutamente descabido que um feto possa ser tratado como um dente, sendo disponível à mulher a escolha sobre tratá-lo e, assim, assumir as dores e as despesas inerentes ao tratamento ou, simplesmente, extraí-lo e deixá-lo no lixo no dentista, sem maiores dispêndios, ainda que aquele vazio por lá fique, perpetuado.
Vamos inverter o panorama. Seria possível, dentro do nosso ordenamento jurídico, uma mãe, em ato desesperado de amor pelo seu filho cardiopata, exigir do médico que arrancasse seu coração e o transplantasse no filho doente para lhe salvar a vida? Sabemos que não. À luz do Direito Penal, ainda que por relevante valor moral, o médico estaria cometendo o crime de Homicídio, nos termos do art. 121, §1º do Código Penal. A uma vida não se pode atribuir mais ou menos valor do que a outra.
Por derradeiro, faz-se necessário também analisar a Lei n. 11.804/08, que trata e disciplina os alimentos gravídicos. Em rápida síntese, o legislador, para proteger a vida do nascituro, criou uma legislação específica para obrigar ao pai, ou provável pai daquela criança a arcar (desde a concepção) com as despesas e bem-estar do nascituro, em respeito à sua vida. É o que diz o seu artigo 2:
“Art. 2º Os alimentos de que trata esta Lei compreenderão os valores suficientes para cobrir as despesas adicionais do período de gravidez e que sejam dela decorrentes, da concepção ao parto, inclusive as referentes a alimentação especial, assistência médica e psicológica, exames complementares, internações, parto, medicamentos e demais prescrições preventivas e terapêuticas indispensáveis, a juízo do médico, além de outras que o juiz considere pertinentes.
Parágrafo único. Os alimentos de que trata este artigo referem-se à parte das despesas que deverá ser custeada pelo futuro pai, considerando-se a contribuição que também deverá ser dada pela mulher grávida, na proporção dos recursos de ambos.” Grifos meus
Essa legislação é de 2008 e defende a vida do nascituro, atribuindo essa obrigação de forma mútua e proporcional ao pai e à mãe. Da mesma forma, não seria isonômico atribuir ao pai apenas o dever de responsabilidades financeiras, como se sua posição fosse de um mero provedor, distante dos direitos da paternidade. Isso demonstra que o Estado brasileiro reconhece a dignidade da pessoa humana desde a concepção, porque protege os direitos do nascituro e, mais, proporciona ferramentas coercitivas para que esse direito à vida (por meio do cuidado alimentar) seja ultimado da maneira mais justa e humana possível.
Se a mulher (ou o homem) não tem discricionariedade absoluta sobre sequer um de seus órgãos, os quais não afetam mais nenhum bem jurídico protegido além do seu universo, como poderia ter sobre outra vida? Realmente demonstramos tecnicamente que não. Como dito inicialmente, este foi um estudo técnico, à luz dos Direitos Humanos e do Estado de Direito Brasileiro e seu ordenamento jurídico. Mas, finda a parte técnica e cumprida minha tarefa acadêmica, encerro com uma reflexão sobre a cultura do descartável que tem invadido as relações humanas nos últimos tempos. Será que os ferrenhos defensores do aborto em 2023 defenderão também a eutanásia nos anos finais do século? Aqueles que buscam tanta praticidade e utilidade nas pessoas de hoje, dentre muito breve atingirão a equivocada inutilidade que enxergam atualmente, quando poderá ser tarde demais para reverter o conceito.