20/06/2025

Uma análise jurídica da Paixão de Cristo

Como sempre faço questão de afirmar, sou Católico e, para mim, Jesus Cristo é Deus, na forma de Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, que encarnou entre nós, por meio da Santíssima Virgem Maria, para nos salvar. De toda forma, muito além dessa dimensão teloógico-devocional, proponho uma análise jurídica da Paixão de Cristo, aos olhos dos Direitos Humanos e do Direito Constitucional Brasileiro, estabelecendo paralelos reflexivos com o cenário atual.

A história do julgamento de Jesus de Nazaré representa uma epifania jurídica que desnuda as estruturas de opressão dissimuladas sob a roupagem do poder legal. Este episódio, que culmina na execução do maior inocente de todos os tempos, é o símbolo eterno do colapso dos direitos fundamentais diante da força bruta do arbítrio e da manipulação institucional. O processo que levou à crucificação de Cristo constitui uma advertência atemporal: o Direito, quando desprovido de seu compromisso ético com a dignidade da pessoa humana, converte-se em instrumento de injustiça.

O julgamento de Jesus, conforme relatado pelos Evangelhos canônicos, infringe de modo flagrante princípios que hoje integram o núcleo essencial dos direitos humanos e do devido processo legal. A prisão ocorreu à noite, sem mandado judicial, em clara violação da legalidade. O interrogatório perante o Sinédrio foi realizado às pressas, com ausência de provas consistentes e em ambiente hostil, o que remete à noção de “julgamento de exceção” — figura rechaçada no art. 5º, inciso XXXVII, da Constituição Federal do Brasil de 1988, que proíbe a criação de tribunais de exceção. Além disso, não se assegurou a Jesus o direito à ampla defesa, tampouco o contraditório, prerrogativas que, na seara do constitucionalismo moderno, constituem cláusulas pétreas.

O teólogo e jurista Jacques Ellul, em sua análise crítica das relações entre fé e política, observa que “a condenação de Jesus é a demonstração de que o poder jurídico, quando corrompido por interesses políticos e religiosos, pode se tornar o carrasco da justiça”. E mais: o próprio Pontius Pilatus, representante do Império Romano e, portanto, da autoridade estatal, confessa publicamente não encontrar culpa alguma em Jesus (Jo 18:38). No entanto, cede à pressão popular, encarnando o paradigma da abdicação judicial — ou, como diria Hannah Arendt, do “banal exercício do mal”, em que a covardia se mascara de neutralidade institucional. Isso sem olvidar do paralelo das autoridades que cedem às pressões midiáticas, muitas vezes ignorando o teor processual.

Esse episódio milenar ressoa com inquietante atualidade em um mundo onde o punitivismo tem se tornado uma espécie de religião civil. A exacerbação da função repressiva do Estado, incentivada por discursos populistas e narrativas securitárias, coloca em xeque os fundamentos do Estado Democrático de Direito. Em nome da “ordem” e da “segurança pública”, assiste-se à erosão dos direitos fundamentais, à ampliação da prisão preventiva como regra e à naturalização da violência institucional.

Luigi Ferrajoli, em sua obra “Direito e Razão”, assevera que “o garantismo não é uma teoria benevolente do Direito Penal, mas a única racionalidade jurídica compatível com os princípios democráticos”. Nesse sentido, respeitar os Direitos Humanos, mesmo — e sobretudo — diante dos acusados, é um imperativo de civilização. A história demonstra que os regimes que desprezaram tais garantias — do nazifascismo ao stalinismo — acabaram por converter o Estado em máquina de moer corpos e silenciar consciências.

O punitivismo contemporâneo, que se reveste de uma retórica de eficiência e justiça sumária, é, na verdade, herdeiro das práticas inquisitoriais. Ele se ancora no medo social, manipulado midiaticamente, e busca a condenação como espetáculo. Conforme adverte Zaffaroni, “não há tirania que não comece com o sacrifício das garantias penais”. Quando os direitos fundamentais são tratados como entraves burocráticos ou indulgências elitistas, abre-se espaço para a emergência do que Günther Jakobs denominou “Direito Penal do Inimigo”, onde o indivíduo é despersonalizado e reduzido a uma ameaça a ser neutralizada.

Assim como Cristo foi julgado não por seus atos, mas por sua condição e discurso — subversivo, crítico, libertador —, muitos hoje são perseguidos por sua identidade, por sua cor, por sua origem social. O cárcere seletivo e o encarceramento em massa dos pobres e marginalizados são a repetição moderna do clamor da turba que preferiu libertar Barrabás: a criminalização do outro, do estranho, do diferente. Em análise à luz da teoria platônica, seria uma forma de punição social àqueles que tentam resgatar os demais e libertá-los da caverna.

Em contrapartida, o respeito aos Direitos Humanos não deve ser entendido como concessão graciosa do Estado, mas como expressão jurídica da dignidade ontológica do ser humano. Kant, em sua fundamentação da metafísica dos costumes, adverte: “Age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca apenas como meio”. O Cristo crucificado é o símbolo último do que ocorre quando o homem é transformado em meio — no caso, um bode expiatório — para sustentar uma falsa ordem social.

Portanto, refletir sobre o julgamento de Jesus à luz do Direito é um exercício de memória crítica e resistência. É reconhecer que os tribunais podem errar, que as multidões podem se equivocar, e que o Direito só é legítimo quando fundado no princípio da dignidade da pessoa humana, como assevera o art. 1º, inciso III, da Constituição da República. Negar isso é repetir, em cada esquina da história, o gesto de Pilatos: lavar as mãos enquanto a injustiça ergue, novamente, a cruz.