22/12/2024

Depois do 13 de Maio: A Luta Contra o Trabalho Análogo à Escravidão em Pleno Século XXI

Por Erika Verde

 

Olá, meu leitor do Portal Dokimasia, eu sou Erika Verde, mulher preta, advogada trabalhista de São Luís do Maranhão, e membro da Comissão da Verdade da Escravidão Negra da OAB/MA. Precisamos falar sobre um assunto extremamente importante e urgente: o trabalho análogo à escravidão em pleno século XXI.

Maio é um mês de profunda importância para a população negra no Brasil, marcado pela assinatura da Lei Áurea em 13 de maio de 1888, que oficialmente aboliu a escravidão no país. No entanto, apesar de declarados livres há mais de um século, muitos trabalhadores ainda enfrentam condições análogas à escravidão em pleno 2024. Esta chaga persistente no Brasil e no mundo continua a violar direitos humanos básicos e laborais, evidenciando que a abolição formal não erradicou totalmente as práticas opressivas e desumanas.

A novela “Renascer”, originalmente exibida pela TV Globo em 1993 e atualmente em remake, traz à tona a realidade dos trabalhadores rurais que vivem em condições de exploração extrema. Através do personagem Tião Galinha, a trama expõe situações que, infelizmente, ainda são encontradas no Brasil contemporâneo.

O Personagem Tião Galinha

Tião Galinha é um trabalhador rural que vive em condições de extrema exploração na fazenda de cacau de um coronel. Ele é forçado a comprar na mercearia da fazenda, controlada pelo coronel, o que cria uma dívida constante e o prende a uma forma moderna de servidão. Quando Tião tenta comprar em uma quitanda de um libanês fora da fazenda, ele é brutalmente espancado pelos capangas do coronel. Essa violência é uma tática de intimidação usada para manter os trabalhadores sob controle e impedir qualquer tentativa de autonomia.

Tião representa a realidade de muitos trabalhadores rurais no Brasil que, apesar da abolição formal da escravidão, continuam a enfrentar práticas opressivas e desumanas que os mantêm em uma situação de exploração extrema.

A Personagem Pureza 

Outra personagem que ilustra a realidade do trabalho análogo à escravidão é Pureza. Pureza, uma mulher forte e determinada, enfrenta a exploração e a opressão ao tentar encontrar seu filho desaparecido, que foi aliciado para trabalhar em condições análogas à escravidão. Sua história é inspirada na vida real de muitas mães e familiares que lutam contra o desaparecimento de entes queridos no contexto de trabalho forçado e tráfico de pessoas.

Pureza simboliza a resistência e a luta das mulheres negras que, apesar das adversidades, continuam a buscar justiça e dignidade para suas famílias. Sua busca incansável pelo filho destaca a gravidade do problema e a necessidade de combate contínuo à exploração laboral.

 

Documentário “Precisão”

Em 2019, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) e o Ministério Público do Trabalho (MPT) lançaram em São Luís, capital do Maranhão, o filme documentário “Precisão”. Este documentário apresenta flagrantes de trabalhadores resgatados em condições análogas ao trabalho escravo e narra a história de vida de seis pessoas que decidiram contar suas experiências para evitar que outras pessoas fossem vítimas como elas. 

“Precisão” é uma palavra usada pelo povo maranhense para definir a extrema necessidade de lutar pela sobrevivência. Vulneráveis sócio e economicamente, é por precisão que muitos brasileiros acabam submetidos a condições de trabalho análogas à escravidão.

Entre 2003 e 2018, as fiscalizações resgataram no Brasil mais de 45.000 trabalhadores em condições análogas à escravidão, segundo dados do Observatório da Erradicação do Trabalho Escravo e do Tráfico de Pessoas. Desse total, cerca de 31% eram analfabetos, 39% tinham estudado até o 5º ano, 15% tinham chegado ao ensino fundamental II, e 54% se declararam negros ou pardos. Um total de 22% dos trabalhadores resgatados em condições análogas à escravidão no Brasil nasceu no Maranhão.

Para assistir ao documentário “Precisão”, acesse este link.

Este documentário é um importantíssimo instrumento de conscientização para que nós nunca mais tenhamos um único trabalhador maranhense, trabalhador brasileiro, submetido a condições tão degradantes.

 

Situações Análogas à Escravidão no Século XXI

Infelizmente, muitas formas de trabalho ainda se assemelham à escravidão, mesmo em pleno século XXI. Entre as práticas mais comuns, destacam-se:

  • Trabalho Forçado: Trabalhadores que são obrigados a trabalhar contra a sua vontade, frequentemente mediante ameaças ou violência.
  • Jornadas Exaustivas: Excessivas horas de trabalho sem pausas adequadas, que levam à exaustão física e mental.
  • Condições Degradantes: Ambientes de trabalho que não fornecem condições mínimas de higiene, alimentação ou segurança.
  • Servidão por Dívida: Trabalhadores que têm sua liberdade restringida devido a dívidas com os empregadores.

Resgates em 2023

Em 2023, o Ministério do Trabalho e Emprego resgatou 3.190 trabalhadores em condições análogas à escravidão, um número que destaca a gravidade do problema ainda existente no país. Esses resgates mostram que a exploração laboral e as condições sub-humanas de trabalho são questões reais e urgentes que necessitam de combate contínuo. As ações do governo e de diversas organizações visam erradicar essa prática, protegendo os direitos e a dignidade dos trabalhadores.

Principais Direitos Trabalhistas

Os trabalhadores têm direitos fundamentais garantidos pela Constituição Federal de 1988 e pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), bem como por tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário. Vamos explorar os principais direitos que protegem os trabalhadores e como eles se aplicam para combater as condições análogas à escravidão.

  1. Direito ao Trabalho Digno
    O artigo 7º da Constituição Federal assegura direitos que visam garantir condições dignas de trabalho, incluindo salário mínimo, jornada de trabalho limitada e condições de saúde e segurança no ambiente laboral. Esses direitos são fundamentais para prevenir situações de exploração.
  2. Jornada de Trabalho e Remuneração
    • Jornada de Trabalho: A CLT estabelece uma jornada de trabalho de no máximo 8 horas diárias e 44 horas semanais. Qualquer trabalho além dessa carga deve ser remunerado como hora extra.
    • Remuneração: Todo trabalhador tem direito a um salário mínimo, pago em moeda corrente, nunca inferior ao estabelecido por lei. A não observância deste direito é uma das formas de exploração que se equiparam à escravidão.
    1. Saúde e Segurança no Trabalho
    • Normas Regulamentadoras (NRs): As NRs, especialmente a NR 31 (Trabalho Rural) e a NR 36 (Abate e Processamento de Carnes), entre outras, estabelecem condições mínimas de saúde e segurança que os empregadores devem proporcionar. A não observância dessas normas pode levar a situações de trabalho degradante.
    1. Proibição do Trabalho Escravo
      O artigo 149 do Código Penal define o trabalho escravo contemporâneo, que inclui trabalho forçado, jornada exaustiva, condições degradantes de trabalho, restrição de locomoção em razão de dívida e a retenção de documentos. Este artigo é uma ferramenta crucial para a erradicação do trabalho escravo.
    2. Liberdade Sindical e Direito à Organização
      Os trabalhadores têm o direito de se organizar em sindicatos para defender seus interesses e negociar melhores condições de trabalho. A liberdade sindical é fundamental para a luta contra a exploração.

    O combate ao trabalho análogo à escravidão conta com a possibilidade de denúncias feitas de forma remota e sigilosa no Sistema Ipê. https://ipetrabalhoinfantil.trabalho.gov.br/#!/


    Total de Resgates por Estado – 2023

    • Goiás: 739
    • Minas Gerais: 651
    • São Paulo: 392
    • Rio Grande do Sul: 334
    • Piauí: 158
    • Maranhão: 107

    Conclusão

    Combater o trabalho em condições análogas à escravidão é uma responsabilidade coletiva que exige a atuação do Estado, da sociedade civil e do sistema de justiça. Como advogados e defensores dos direitos humanos, temos o dever de identificar, denunciar e combater essas práticas, garantindo que todos os trabalhadores tenham seus direitos respeitados e possam trabalhar em condições dignas e justas.