Dies Laboris

Diverse group of businesspeople laughing together while going over paperwork and using a laptop during an office meeting
No dia 1º de maio, quando o mundo celebra o Dies Laboris, a epifania da dignidade do trabalho humano, cabe-nos não apenas a rememoração simbólica das lutas operárias que marcaram o fim do século XIX, mas, sobretudo, uma reflexão densa e crítica acerca da trajetória jurídica que estrutura e tutela os direitos dos trabalhadores no Brasil. Esta data, impregnada de simbolismo e resistência, nos convoca a revisitar os marcos históricos da proteção laboral, desde a promulgação da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), em 1943, até os influxos democráticos da Constituição de 1988 — a chamada Constituição Cidadã — que consagrou o trabalho como fundamento da República.
A Consolidação das Leis do Trabalho foi instituída por Getúlio Vargas através do Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943. Este ato normativo condensou, organizou e ampliou um conjunto de normas esparsas que, desde a década de 1930, buscavam regular as relações de trabalho em um país que, então, ensaiava sua transição do modelo agrário-exportador para a industrialização. A CLT, ainda que gestada em um regime autoritário, nasceu sob o signo do Estado interventor e protetor, inspirado na doutrina do trabalho como fator de paz social, típica do corporativismo de cunho fascista europeu.
Neste contexto, a proteção ao trabalhador foi concebida como uma concessão do Estado — e não como resultado de uma luta de classes autônoma ou de um pacto social democrático. Os sindicatos, por exemplo, foram organizados sob rígido controle estatal, submetidos ao Ministério do Trabalho e financiados por meio do imposto sindical compulsório. A Justiça do Trabalho, criada formalmente em 1941, foi igualmente estruturada como um braço do Executivo, antes de se afirmar como parte do Judiciário.
Contudo, é inegável que a CLT representou um avanço civilizatório. Fixou a jornada de trabalho em oito horas diárias, regulamentou férias anuais remuneradas, criou o salário mínimo, normatizou o contrato de trabalho, introduziu a proteção à maternidade e à saúde do trabalhador, e inaugurou um regime de responsabilidade patronal até então inexistente.
Com a redemocratização do país e a promulgação da Constituição Federal de 1988, o Direito do Trabalho ganha novos contornos, agora inseridos em uma moldura normativo-axiológica democrática. Diferentemente da CLT, concebida sob a égide do autoritarismo, a Constituição Cidadã resulta de um processo constituinte plural e participativo, no qual os trabalhadores e suas entidades representativas tiveram voz ativa.
O artigo 1º, inciso IV, inscreve o valor social do trabalho como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil. O artigo 7º, por sua vez, elenca um rol extenso — embora não exaustivo — de direitos sociais dos trabalhadores urbanos e rurais, cuja eficácia é plena e imediata. Dentre eles, destacam-se: a proteção contra a despedida arbitrária (inciso I); o seguro-desemprego (inciso II); o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço – FGTS (inciso III); o salário mínimo digno (inciso IV); a jornada de oito horas diárias e quarenta e quatro semanais (inciso XIII); o repouso semanal remunerado (inciso XV); as férias anuais acrescidas de um terço (inciso XVII); a licença-maternidade de 120 dias (inciso XVIII) e a liberdade sindical (artigo 8º), rompendo com o monopólio sindical e a tutela estatal.
A Constituição também ampliou o escopo do Direito do Trabalho, estendendo seus princípios aos trabalhadores rurais, domésticos e servidores públicos, e consagrou o princípio da irrenunciabilidade dos direitos trabalhistas — expressão da indisponibilidade jurídica da dignidade humana no âmbito laboral.
Nas últimas décadas, especialmente a partir do século XXI, observamos um movimento ambíguo. De um lado, a busca por modernização das relações laborais frente aos desafios da globalização e da revolução tecnológica; de outro, um progressivo esvaziamento das garantias conquistadas, sob o argumento da desburocratização e do estímulo à empregabilidade.
A emblemática Reforma Trabalhista de 2017 (Lei nº 13.467/2017) promoveu uma inflexão no paradigma constitucional protetivo. Dentre as alterações mais controvertidas, figuram: a prevalência do negociado sobre o legislado (ainda que em prejuízo ao trabalhador); a limitação da Justiça do Trabalho no exame de cláusulas contratuais; a fragilização do princípio da gratuidade da justiça laboral; e a permissão para a terceirização irrestrita, inclusive nas atividades-fim.
Tais mudanças, longe de representar simples ajustes técnicos, configuram uma mudança ideológica no papel do Estado frente ao capital e ao trabalho, resgatando discursos neoliberais que pretendem recolocar o trabalhador como mero sujeito de mercado — autônomo e racional — desconsiderando as profundas desigualdades estruturais que permeiam as relações laborais no Brasil.
Neste 1º de maio, em que se homenageia o labor como expressão da dignidade humana, urge revisitarmos criticamente os rumos do Direito do Trabalho em nosso país. A Constituição de 1988 permanece como farol normativo, mas sua concretização depende da atuação vigilante da sociedade civil, dos sindicatos, das universidades e dos operadores do Direito. O trabalho não pode ser reduzido à mercadoria; ele é o fio que tece o tecido da cidadania.
Como afirmou Norberto Bobbio, “os direitos do homem são o produto da história, não da natureza”. Assim também o são os direitos dos trabalhadores: fruto de lutas, pactos e consciências despertas. Em tempos de plataformas digitais, gig economy e inteligência artificial, a tarefa que se impõe é a de reinventar o Direito do Trabalho sem abrir mão de seus fundamentos humanistas, solidários e democráticos.
A história é testemunha: quando os direitos do trabalho refluem, o autoritarismo avança. Que a memória do 1º de maio nos inspire, pois, a preservar a dignidade do labor, não como privilégio, mas como expressão da justiça social que ainda buscamos realizar.