22/12/2024
Originalmente publicado em 13/11/2023, por Marcelo Henrique, disponível em: https://juristas.com.br/2023/11/16/presuncao-de-inocencia-e-democracia/

O arcabouço principiológico do Estado Democrático de Direito é dotado de raízes axiológicas que viabilizam o exercício do poder que, do povo, emana, nos termos do parágrafo único, do art. 1º da Constituição Federal de 1988. Nesse diapasão, há princípios importantes à construção do Estado Brasileiro, mas há outros que transcendem à relevância principiológica e adentram na seara da imprescindibilidade, tornando-se a verdadeira essência do regime democrático.

Assim como em diversas democracias ao redor do mundo, o Brasil estipula o estado de inocência como regra, nos termos do art. 5º, LVII, da Constituição da República. Por meio desse comando, a norma é expressa no sentido de que qualquer imposição de pena ou apontamento de culpabilidade hábil a eliminar a presunção de inocência apenas serão possíveis após o trânsito em julgado. Em outras palavras, a própria Constituição Federal de 1988 determina o direito do acusado aos reexames legais, nos termos da legislação adjetiva, possibilitando-lhe a completude do Due Process of Law, o chamado Devido Processo Legal.

Dentro do Devido Processo Legal, é imperioso destacar que o acusado e condenado tem direito a ver a sentença que lhe condenou vergastada no órgão do Poder Judiciário de instância superior. Nesse sentido, o reexame realizado pelo r. juízo de instância imediatamente superior, que seriam, em regra, os Tribunais de Justiça e os Tribunais Federais, será de fatos e de Direito. Por isso, essa imperiosa reanálise deverá passar por todos os pontos cotejados no processo, permitindo-se um novo julgamento ao sentenciado, mais uma vez regido pelo Princípio da Persuasão Racional do Julgador, agora em colegiado.

Além desse novo julgamento, assiste ao sentenciado o direito de recorrer ao Superior Tribunal de Justiça quando entender que em seu julgamento fora desrespeitada ou negada vigência da legislação federal, como por exemplo o próprio Código Penal e o Código de Processo Penal. E no caso de eventual negativa de vigência ou equivocada aplicação de dispositivos constitucionais, terá o sentenciado o direito de levar sua irresignação ao Supremo Tribunal Federal, guardião maior da Constituição da República.

Em que pese seja importante esse levantamento instrumental, ainda de maior valia é a compreensão teleológica da presunção de inocência como um dos supedâneos do regime. Isso porque é assegurado o direito a recurso ao condenado que assim o quiser proceder, dentro da sistemática discutida no parágrafo anterior. E essa lógica advém do regime democrático, o qual assegura aos cidadãos o direito de reanálise, em axiologia paralela com as condenações sofridas pela própria Fazenda Pública.

A chamada remessa ex-officio é o encaminhamento direito dos processos para análise recursal, com irresignação presumida, em atendimento ao art. 496 do Código de Processo Civil, ou ainda, às leis n. 4.717/1965 e n. 12.016/2009. Atenção especial ao termo remessa, em substituição da expressão recurso. Notadamente porque não há discricionariedade do operador do direito representante do órgão titular das ações previstas nas legislações anteriores, sendo o envio dos autos para novo julgamento, uma obrigatoriedade decorrente da própria lei.

Com isso, é possível depreender que o Estado protege o cidadão de decisões judiciais individuais equivocadas, ou maculadas por qualquer tipo de vício, dolo, ou lawfare. Para isso, assegura-lhes o direito de recorrer – com reestudo fático – para instância superior e colegiada. E a mesma proteção é conferida à Fazenda Pública, cujo impacto negativo atinge toda coletividade, sendo imperioso o tratamento fazendário com zelo e dentro dos mais escorreitos princípios conferidos à gestão do patrimônio público.

Nesse sentido, é cabível esse paralelo entre o direito de recorrer e a presunção de inocência, em consonância com a remessa ex officio e a supremacia do interesse público.

Por derradeiro, é importante fazer menção ao art. 156 do Código de Processo Penal, o qual prevê a divisão do ônus da prova entre as partes da persecução penal. Data maxima vaenia, trata-se de um dispositivo – ao meu ver – absolutamente desconexo com o Estado Democrático de Direito regulamentado pela Constituição Federal de 1988. Em verdade, por força da presunção de inocência, expressamente prevista na Lei Maior. Trata-se, na verdade, de um exemplo da chamada presunção juris tantum, ou relativa, a qual admite prova em contrário. Entretanto, parece-me claro que o ônus probatório pertence exclusivamente ao Parquet, quando do exercício de sua atividade de titular da Ação Penal.

De toda forma, qualquer apontamento ou movimento legal em desrespeito à presunção de inocência jamais poderá ser tolerado, justamente por representar a violação não apenas de um indivíduo, mas de todo um sistema, ou ainda, de todo o ordenamento jurídico brasileiro.